Dor cervical na enxaqueca: sintoma da crise, gatilho ou problema no pescoço?

19 de dezembro de 2025

Dor cervical na enxaqueca: sintoma da crise, gatilho ou problema no pescoço?

Quando a enxaqueca "desce" para o pescoço


Muita gente com enxaqueca não reclama apenas de dor na cabeça. A dor aparece na nuca, desce para o pescoço e dá a impressão de que "o problema está na coluna cervical".


Estudos recentes mostram que a dor cervical é extremamente frequente em pessoas com enxaqueca, podendo surgir antes, durante ou após a crise. Em muitos casos, essa dor leva a diagnósticos equivocados, atrasando o tratamento adequado.


Este texto se baseia em uma revisão publicada em 2025 por Rees e colaboradores na revista Cephalalgia, que sintetizou o conhecimento atual sobre a relação entre enxaqueca e dor cervical.


Três situações principais


1. Sintoma da própria crise

A dor cervical pode fazer parte da enxaqueca:

  • Surge como sintoma premonitório (horas antes da dor de cabeça)
  • Acompanha a fase de dor
  • Persiste na "ressaca" da crise


Características típicas:

  • Sensação de rigidez, peso ou "cansaço"
  • Nem sempre relacionada a movimento específico
  • Frequentemente unilateral, do mesmo lado da dor de cabeça


2. Gatilho percebido

Muitos pacientes relatam que a crise "começa no pescoço". Porém, parte desse "gatilho" pode ser o próprio início da crise — o cérebro já está em processo de enxaqueca, e o paciente interpreta a dor no pescoço como causa, não como sinal precoce.


3. Problema cervical coexistente

É possível ter enxaqueca E doença cervical mecânica (artrose, sobrecarga muscular, discopatia). Nesses casos há:

  • Dor cervical que piora com movimentos e posturas específicas
  • Melhora com repouso e ajuste postural
  • Sinais objetivos de disfunção ao exame físico
  • Flutuações independentes das crises de enxaqueca


O desafio é separar o que é dor de pescoço por enxaqueca do que é por problema cervical, ou uma mistura dos dois.


O que a ciência mostra


Prevalência elevada: Uma grande proporção de pessoas com enxaqueca relata dor cervical. Pacientes com ambas as condições apresentam maior incapacidade, mais ansiedade e depressão, e pior qualidade de vida.


Complexo trigeminocervical: Nervos da face, meninges e cabeça (via trigêmeo) convergem com nervos da região cervical alta (C1-C3) para a mesma área na medula. Por isso, o sistema nervoso central "mistura" sinais da cabeça e do pescoço.


Sensibilização central: Com o tempo, os neurônios se tornam mais excitáveis. Na prática: dor com menor estímulo, dor que se espalha e hipersensibilidade ao toque, mesmo fora das crises.


Quando suspeitar de outra condição


Sinais de alerta que exigem investigação:

  • Febre, perda de peso, mal-estar importante
  • Dor intensa e contínua, pior à noite
  • Trauma recente, história de câncer
  • Déficit neurológico (fraqueza, alteração de sensibilidade)
  • Rigidez importante ou sinais de infecção


Como diferenciar


Dor cervical da enxaqueca:

  • Varia com o ciclo da crise
  • Associa-se a fotofobia, fonofobia e náuseas
  • Pode preceder a dor de cabeça
  • Nem sempre piora com movimento específico


Dor mecânica cervical:

  • Piora com movimentos ou posturas determinadas
  • Melhora com ajustes ergonômicos e repouso
  • Limitação de movimento
  • Pontos gatilho bem localizados


Na realidade, os dois quadros frequentemente se misturam.


Avaliação clínica

A avaliação deve incluir:



História detalhada:

  • Quando a dor no pescoço aparece em relação à crise
  • Localização exata
  • Fatores de piora e melhora
  • Histórico de trauma, artrose, trabalho em computador
  • Alterações do sono


Exame físico:

  • Avaliação da postura
  • Amplitude de movimento
  • Palpação da musculatura
  • Sinais de disfunção articular


Exames de imagem: Não são rotina. São indicados quando há sinais de alerta, déficit neurológico ou suspeita de outra doença importante.


Opções de tratamento


Medicamentos


Preventivos:

  • Amitriptilina: eficaz na enxaqueca e na dor cervical crônica
  • Toxina botulínica (Botox): no protocolo PREEMPT, mostrou redução da dor cervical em enxaqueca crônica
  • Anti-inflamatórios: eficazes para dor de coluna e crises agudas


Abordagens não farmacológicas


Exercício aeróbico regular: reduz intensidade, frequência e duração das crises, além de melhorar dores musculoesqueléticas

Fisioterapia cervical: foco em postura, controle motor, mobilização articular e tratamento de pontos gatilho

Yoga: alguns estudos mostram redução de crises e melhoria da qualidade de vida

Acupuntura: evidência consistente na prevenção de enxaqueca

Terapias comportamentais: úteis em pacientes com ansiedade, depressão ou alto estresse


Procedimentos intervencionistas


O bloqueio do nervo occipital maior pode reduzir dias de cefaleia e intensidade da dor em enxaqueca crônica. É reservado para casos refratários com componente occipital/cervical importante.


Mitos comuns


"Se dói o pescoço, o problema não é enxaqueca, é coluna cervical."

 ❌ Falso. A maioria dos pacientes com enxaqueca terá dor cervical sem doença estrutural grave.


"A dor no pescoço sempre desencadeia a crise."

❌ Nem sempre. Muitas vezes é sintoma precoce da própria crise.


"Tratar só o pescoço resolve a enxaqueca."

❌ Não. O foco deve ser tratamento integrado.


"Dor forte sempre precisa de ressonância."

❌ Não. Exames são guiados por sinais de alerta, não só pela intensidade.


Quando procurar especialista


Busque avaliação especializada quando:

  • Dor frequente ou incapacitante
  • Falha ou intolerância a tratamentos prévios
  • Dúvida sobre a causa (enxaqueca, coluna ou ambos)
  • Impacto importante em sono, humor, trabalho e vida familiar

Perguntas frequentes


Dor no pescoço pode ser sintoma de enxaqueca?

Sim. A maioria dos pacientes terá dor cervical em algum momento do ciclo da crise.


Como diferenciar dor cervical da enxaqueca de problema na coluna?

A dor da enxaqueca segue o ciclo da crise e associa-se a náuseas, fotofobia e fonofobia. A dor mecânica piora com movimentos específicos. Muitas vezes só o exame médico consegue separar as duas.


Todo paciente precisa fazer ressonância?

Não. Exames são indicados quando há sinais de alerta ou suspeita de outra doença.


A fisioterapia ajuda?

Sim, especialmente quando há tensão muscular e alterações posturais. O ideal é integrar ao tratamento neurológico.


Bloqueio do nervo occipital funciona?

Em casos selecionados de enxaqueca crônica com componente occipital importante, pode reduzir dias de dor e intensidade das crises.


Conclusão


A dor cervical na enxaqueca não é um detalhe — é parte relevante do quadro clínico e associa-se à maior incapacidade.


A boa notícia é que há explicação neuroanatômica para essa ligação, caminhos claros de avaliação e tratamentos farmacológicos e não farmacológicos que podem ser combinados para abordar tanto a enxaqueca quanto a dor cervical.


O ponto central: não subestime o pescoço, mas também não culpe a coluna por tudo. Avaliação cuidadosa e plano individualizado fazem diferença concreta na vida de quem convive com dor crônica.


Aviso importante: As informações deste texto não substituem uma avaliação médica. Cada caso de dor crônica é único e deve ser analisado individualmente por um profissional de saúde habilitado.


José Osvaldo Barbosa Neto – CRM 5359 | RQE 1700 (Anestesiologia) | RQE 2954 (Dor). Especialista em Medicina da Dor, São Luís – MA.


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