
Dor cervical na enxaqueca: sintoma da crise, gatilho ou problema no pescoço?
Dor cervical na enxaqueca: sintoma da crise, gatilho ou problema no pescoço?

Quando a enxaqueca "desce" para o pescoço
Muita gente com enxaqueca não reclama apenas de dor na cabeça. A dor aparece na nuca, desce para o pescoço e dá a impressão de que "o problema está na coluna cervical".
Estudos recentes mostram que a dor cervical é extremamente frequente em pessoas com enxaqueca, podendo surgir antes, durante ou após a crise. Em muitos casos, essa dor leva a diagnósticos equivocados, atrasando o tratamento adequado.
Este texto se baseia em uma revisão publicada em 2025 por Rees e colaboradores na revista Cephalalgia, que sintetizou o conhecimento atual sobre a relação entre enxaqueca e dor cervical.
Três situações principais
1. Sintoma da própria crise
A dor cervical pode fazer parte da enxaqueca:
- Surge como sintoma premonitório (horas antes da dor de cabeça)
- Acompanha a fase de dor
- Persiste na "ressaca" da crise
Características típicas:
- Sensação de rigidez, peso ou "cansaço"
- Nem sempre relacionada a movimento específico
- Frequentemente unilateral, do mesmo lado da dor de cabeça
2. Gatilho percebido
Muitos pacientes relatam que a crise "começa no pescoço". Porém, parte desse "gatilho" pode ser o próprio início da crise — o cérebro já está em processo de enxaqueca, e o paciente interpreta a dor no pescoço como causa, não como sinal precoce.
3. Problema cervical coexistente
É possível ter enxaqueca E doença cervical mecânica (artrose, sobrecarga muscular, discopatia). Nesses casos há:
- Dor cervical que piora com movimentos e posturas específicas
- Melhora com repouso e ajuste postural
- Sinais objetivos de disfunção ao exame físico
- Flutuações independentes das crises de enxaqueca
O desafio é separar o que é dor de pescoço por enxaqueca do que é por problema cervical, ou uma mistura dos dois.
O que a ciência mostra
Prevalência elevada: Uma grande proporção de pessoas com enxaqueca relata dor cervical. Pacientes com ambas as condições apresentam maior incapacidade, mais ansiedade e depressão, e pior qualidade de vida.
Complexo trigeminocervical: Nervos da face, meninges e cabeça (via trigêmeo) convergem com nervos da região cervical alta (C1-C3) para a mesma área na medula. Por isso, o sistema nervoso central "mistura" sinais da cabeça e do pescoço.
Sensibilização central: Com o tempo, os neurônios se tornam mais excitáveis. Na prática: dor com menor estímulo, dor que se espalha e hipersensibilidade ao toque, mesmo fora das crises.
Quando suspeitar de outra condição
Sinais de alerta que exigem investigação:
- Febre, perda de peso, mal-estar importante
- Dor intensa e contínua, pior à noite
- Trauma recente, história de câncer
- Déficit neurológico (fraqueza, alteração de sensibilidade)
- Rigidez importante ou sinais de infecção
Como diferenciar
Dor cervical da enxaqueca:
- Varia com o ciclo da crise
- Associa-se a fotofobia, fonofobia e náuseas
- Pode preceder a dor de cabeça
- Nem sempre piora com movimento específico
Dor mecânica cervical:
- Piora com movimentos ou posturas determinadas
- Melhora com ajustes ergonômicos e repouso
- Limitação de movimento
- Pontos gatilho bem localizados
Na realidade, os dois quadros frequentemente se misturam.
Avaliação clínica
A avaliação deve incluir:
História detalhada:
- Quando a dor no pescoço aparece em relação à crise
- Localização exata
- Fatores de piora e melhora
- Histórico de trauma, artrose, trabalho em computador
- Alterações do sono
Exame físico:
- Avaliação da postura
- Amplitude de movimento
- Palpação da musculatura
- Sinais de disfunção articular
Exames de imagem: Não são rotina. São indicados quando há sinais de alerta, déficit neurológico ou suspeita de outra doença importante.
Opções de tratamento
Medicamentos
Preventivos:
- Amitriptilina: eficaz na enxaqueca e na dor cervical crônica
- Toxina botulínica (Botox): no protocolo PREEMPT, mostrou redução da dor cervical em enxaqueca crônica
- Anti-inflamatórios: eficazes para dor de coluna e crises agudas
Abordagens não farmacológicas
Exercício aeróbico regular: reduz intensidade, frequência e duração das crises, além de melhorar dores musculoesqueléticas
Fisioterapia cervical: foco em postura, controle motor, mobilização articular e tratamento de pontos gatilho
Yoga: alguns estudos mostram redução de crises e melhoria da qualidade de vida
Acupuntura: evidência consistente na prevenção de enxaqueca
Terapias comportamentais: úteis em pacientes com ansiedade, depressão ou alto estresse
Procedimentos intervencionistas
O bloqueio do nervo occipital maior pode reduzir dias de cefaleia e intensidade da dor em enxaqueca crônica. É reservado para casos refratários com componente occipital/cervical importante.
Mitos comuns
"Se dói o pescoço, o problema não é enxaqueca, é coluna cervical."
❌ Falso. A maioria dos pacientes com enxaqueca terá dor cervical sem doença estrutural grave.
"A dor no pescoço sempre desencadeia a crise."
❌ Nem sempre. Muitas vezes é sintoma precoce da própria crise.
"Tratar só o pescoço resolve a enxaqueca."
❌ Não. O foco deve ser tratamento integrado.
"Dor forte sempre precisa de ressonância."
❌ Não. Exames são guiados por sinais de alerta, não só pela intensidade.
Quando procurar especialista
Busque avaliação especializada quando:
- Dor frequente ou incapacitante
- Falha ou intolerância a tratamentos prévios
- Dúvida sobre a causa (enxaqueca, coluna ou ambos)
- Impacto importante em sono, humor, trabalho e vida familiar
Perguntas frequentes
Dor no pescoço pode ser sintoma de enxaqueca?
Sim. A maioria dos pacientes terá dor cervical em algum momento do ciclo da crise.
Como diferenciar dor cervical da enxaqueca de problema na coluna?
A dor da enxaqueca segue o ciclo da crise e associa-se a náuseas, fotofobia e fonofobia. A dor mecânica piora com movimentos específicos. Muitas vezes só o exame médico consegue separar as duas.
Todo paciente precisa fazer ressonância?
Não. Exames são indicados quando há sinais de alerta ou suspeita de outra doença.
A fisioterapia ajuda?
Sim, especialmente quando há tensão muscular e alterações posturais. O ideal é integrar ao tratamento neurológico.
Bloqueio do nervo occipital funciona?
Em casos selecionados de enxaqueca crônica com componente occipital importante, pode reduzir dias de dor e intensidade das crises.
Conclusão
A dor cervical na enxaqueca não é um detalhe — é parte relevante do quadro clínico e associa-se à maior incapacidade.
A boa notícia é que há explicação neuroanatômica para essa ligação, caminhos claros de avaliação e tratamentos farmacológicos e não farmacológicos que podem ser combinados para abordar tanto a enxaqueca quanto a dor cervical.
O ponto central: não subestime o pescoço, mas também não culpe a coluna por tudo. Avaliação cuidadosa e plano individualizado fazem diferença concreta na vida de quem convive com dor crônica.
Aviso importante: As informações deste texto não substituem uma avaliação médica. Cada caso de dor crônica é único e deve ser analisado individualmente por um profissional de saúde habilitado.
José Osvaldo Barbosa Neto – CRM 5359 | RQE 1700 (Anestesiologia) | RQE 2954 (Dor). Especialista em Medicina da Dor, São Luís – MA.





